“Noite e dia as Teletelas massacravam os ouvidos das pessoas com estatísticas que provavam que hoje a população tinha mais comida, mais roupa, melhores casas, melhores opções de lazer — que vivia mais, trabalhava menos, era mais alta, mais saudável, mais forte, mais feliz, mais inteligente, mais culta do que as pessoas de cinquenta anos antes.”
O relato é de Winston Smith, personagem da ficção profética, escrita por George Orwell, 1984. A Teletela é o dispositivo que, além do nome peculiar, está presente em cada uma das residências do que fora Londres um dia, e hoje é a principal cidade da Faixa Aérea 1. A terceira mais populosa das províncias da Oceânia. A obra é uma distopia, um mundo onde os grandes blocos que restaram (Oceânia, Eurásia e Lestásia) vivem em situação de frequente beligerância e o Estado monitora proximamente os passos, e até mesmo os pensamentos, dos seus cidadãos. A sociedade é bem definida e dividida entre Proletas (a base, cujo status é comparado aos animais), os membros do Partido (classe que faz a Estado funcionar) e o núcleo do Partido que dita as regras por meio de um governo centralizador e que lança mão de recursos tecnológicos para manipular o comportamento e, até mesmo mais do que isso: a consciência dos indivíduos.
Além da Teletela, há outros recursos, que são apresentados ao longo da ficção escrita em 1948, tal como o Ditógrafo (uma especie de assistente pessoal, que lembra a Siri), o Versificador e outras maravilhas tecnológicas que são instrumentos para tornar as atividades mais suaves. Independentemente do nome ou tipo de equipamento apresentado, a visão de George Orwell é quase profética com relação aos gadgets que nos servem hoje e techs badaladas. Veja por exemplo o trecho abaixo:
“Os versos eram elaborados — sem nenhuma intervenção humana — por um instrumento conhecido como versificador.”
Repare que isso foi escrito em 1948! Mas, é de uma atualidade medonha. Vejam o trecho do livro 21 lições para o século 21 de Yuval Noah Harari, editado em 2018:
“Depois de ajudá-lo a entrar em contato com sua tristeza mais profunda, o algoritmo vai então tocar a única canção no mundo que provavelmente vai animar você — talvez porque seu subconsciente a conecta com uma lembrança feliz da infância da qual nem mesmo você tem consciência. Nenhum DJ humano poderia jamais esperar equiparar-se aos talentos dessa IA.”
Em 1984 as músicas eram, inclusive, compostas para manter os Proletas entretidos. Junte a visão (aplicabilidade) de Orwell e a proposta de Harari e perceba o risco!
No livro do Harari o trecho está na parte que trata do trabalho no futuro e está sob o título “Mozart na máquina”. O título por si só anuncia os milagres que serão efetuados pela Inteligência Artificial. Mas, imagine esse “milagre” sendo utilizado para “tocar” indivíduos de uma forma única com propósitos pouco nobres! Dúvida da possibilidade disso acontecer? Mesmo com a massa de dados que esta sendo gerada por você mesmo (seu comportamento nas redes sociais, por exemplo) e capturada pelos gigantes da Internet?
No mundo de Orwell a privacidade é um luxo que poucos membros do Estado podem gozar. E mesmo assim só por alguns minutos. Ou uma “desvantagem” que acompanha os Proletas que vivem à margem da sociedade “privilegiada” e por isso não são supervisionados por Teletelas em seus quartos de cortiço no submundo de Londres em 1984. Observe que a Teletela além de transmitir a programação do Estado 24 horas por dia (Lembre-se! você não pode desligá-la), também monitora o interior da residência, interagindo com os moradores (como uma Smart TV) seja por meio do envio de instruções, manipulando suas mentes (mesmo que a realidade demonstre cabalmente fatos para contestação, como a redução de 30g para 20g do suprimento semanal de chocolate por indivíduo no mesmo momento que a propaganda do Estado enaltece o aumento da Produção do mesmo produto) ou percebendo movimentos que podem ser entendidos como ato de subversão, como uma leve expressão de descontentamento diante de uma notícia.
A privacidade é monitorada a fim de permitir que toda a magnificência do que foi conquistado com a revolução seja mantida. Para que “O Grande Irmão” possa protejer seus camaradas liderados. Como um dos slogans do Partido versa:
“Liberdade é escravidão!”
Para que privacidade? Imediatamente me lembrei de um dos trechos, muito interessante que li recentemente no livro “Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais”, lançado em 2018, cujo autor é o Jaron Lanier:
“Esse tipo de problema não é novidade hoje em dia, mas infelizmente vidas ainda podem ser arruinadas. A Uber, que é pseudo-Bummer, chamou a capacidade de espionar pessoas de “visão de Deus”.”
O autor trata da finalidade intencionalmente diferente daquela que um determinado aplicativo se propõe a nos servir quando aderimos ao mesmo. Outra semelhança?
No futuro de Orwell é necessário abrir mão da privacidade em detrimento à inclusão. Não é possível obter as migalhas providas pelo combalido Estado sem sucumbir ao controle da máquina. E aqui vai outro trecho de 21 lições para o século 21, de Harari:
“Estarão conectados desde o útero, e, se em algum momento da vida você optar por se desconectar, as companhias de seguro talvez se recusem a lhe fazer um seguro de vida, empregadores talvez se recusem a empregá-lo, e serviços de saúde talvez se recusem a cuidar de você. Na grande batalha entre saúde e privacidade, a saúde provavelmente vencerá sem muito esforço.”
Para onde estamos indo? Haverá privacidade no futuro? As leis de privacidade são em vão?
Aa questão da privacidade vai além da individualização do ser, o Estado descrito por Orwell busca o controle da consciência dos indivíduos, por meio da relativização de tudo quanto é possível (duplipensamento em Novafala), até mesmo rescrevendo o passado quando necessário. Nesse intento uma das mais nefastas medidas é restringir a linguagem por meio de simplificações sucessivas sob o pretexto de torná-la mais clara e objetiva (trata-se do novo idioma: Novafala). Em 1984 a exuberância do idioma de Shakespeare é sucessivamente assasinada. A eliminação gradativa de verbetes também elimina os signos e sinais que permitem com que os indivíduos expressem seus pensamentos e ideias. Sabemos que todo o progresso da humanidade está apoiado no advento da comunicação, na troca e construção em grupo por meio da mesma.
E ai vai mais um trecho da literatura contemporânea. Jaron Lanier no livro “Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais” escreveu o seguinte:
“Falar nas redes sociais não é realmente falar. Depois que você diz alguma coisa, um contexto é aplicado ao que foi expressado segundo os propósitos e a busca por lucro de outra pessoa. Isso muda o que pode ser expressado. Quando o contexto é dominado pela plataforma, a comunicação e a cultura se tornam insignificantes, rasas e previsíveis. Você tem que se tornar uma pessoa totalmente louca se quiser dizer algo que sobreviverá, ainda que por um breve período, em um contexto imprevisível. Só uma comunicação imbecil pode alcançar isso.”
O trecho está no capítulo intitulado “As redes sociais transformam o que você diz em algo sem sentido. Alguma semelhança?
É impressionante o frescor do romance de Orwell diante de temas tão atuais. 1984 é permeado de um vigor profético no que diz respeito a questão da privacidade. E isso remete a importância de que algo seja feito sob pena de cada vez mais ocorrer a banalização da nossa privacidade em detrimento ao estar inserido na sociedade. É impressionante a quantidade de indivíduos em qualquer local que estejamos com os olhos fitos em telas sobre as mãos.
Sob os mais diversos pretextos estamos mergulhados nos nossos dispositivos móveis (a Teletela dos nossos dias! Será?), sem falar nas TVs, videogames, relógios, geladeiras e toda sorte de dispositivos que nos circundam. O mobile pode nos ouvir! É o que a Siri, Cortana e Alexa andam fazendo! Duvida? Então verifique o link abaixo, uma matéria do USA Today:
Nossos passos também são rastreados. Não acredita? Então leia esse artigo da Fox News:
Repare que estamos falando de grandes veículos de comunicação e não uma ilação produto de uma matéria sensacionalista de um tabloide.
Como se não bastasse, ainda com base nos nossos dados e preferências produzidas aos borbotões diariamente dentro das redes sociais estão guiando nossas escolhas e decisões. Não? Então de uma olhada no documentário Privacidade Hackeada (disponível no Netflix) e reflita sobre o tamanho da encrenca que precisamos resolver!
Autor: Alexandre Prata – CISSP, MBA, ITIL Expert, COBIT, LGPD e GDPRCiber Segurança, TI, GCN e GRC | Especialista em Gestão de Segurança da Informação, Governança de TI e Ger. de Projetos
FONTE: https://www.linkedin.com/pulse/profecia-de-george-orwell-em-1984-e-privacidade-dias-alexandre-prata/